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A Reforma Wesleyana do Século XVIII

Em 1744, João Wesley e nove dos seus colaboradores, todos anglicanos, se reuniram para descobrir o propósito de Deus em levantar o metodismo. Depois de muita oração, concluíram que Deus os chamava para “reformar o país e, em particular, a Igreja [da Inglaterra] e espalhar a santidade bíblica por toda a terra”. A obra teria embasamento numa atualização e ampliação das grandes doutrinas da Reforma de Lutero, buscando aplicar as boas novas à situação social da época.

Segundo o historiador H. O. Wakeman, a Igreja da Inglaterra começou a perder o seu vigor no tempo do rei William. Em seu livro Introduction to the History of the Church on England (Introdução à História da Igreja na Inglaterra), ele diz que “quando os sinos dobraram em 1714 para saudar a entronização de William I, eles anunciaram a morte dos seus [da igreja] altos ideais e vida vigorosa por mais de meio século”. Outrora vigorosas, as denominações oriundas do puritanismo (congregacionais, presbiterianas e batistas) foram enfraquecidas pela imposição de uma única forma de culto (segundo o Livro de Oração Comum). Esse enfraquecimento se intensificou com o crescimento do socinianismo (unitarismo) no meio das igrejas. Em resumo, o cristianismo inglês no século XVIII estava em profunda decadência, carecendo de uma nova reforma. Foi nesse cenário que João Wesley reafirmou os grandes princípios da Reforma Protestante do século XVI no seu ensino, pregação e vivência, trazendo verdadeira renovação ao cristianismo britânico

A justificação pela fé

Conhecida como a experiência do “coração quente”, a experiência religiosa de João Wesley, acontecida em Londres, na noite de 24 de maio de 1738, pode dar a idéia de apenas um momento de forte emoção. Felizmente, ele deixou para a posteridade uma sucinta autobiografia espiritual, na qual a descrição de sua experiência, longe de limitar-se ao que ele sentiu, é uma análise racional, de surpreendente densidade teológica.

No parágrafo 14 da autobiografia, Wesley esclarece os pontos básicos da sua fé evangélica. Ele defende que fé, mais do que crença, é confiança em Cristo e que o pecador arrependido que recebe o dom da fé é perdoado de seus pecados. Afirma que a pessoa, tendo recebido o dom da fé e o perdão dos pecados (justificação), muitas vezes recebe a certeza deste perdão em seu próprio coração.

Ainda no gozo daquela paz com Deus que acompanha a certeza do perdão e a adoção como filho, João Wesley começa a compartilhar sua nova fé entre amigos, nas sociedades religiosas e, quando possível, nas igrejas.

Inesperadamente convidado por Whitefield, Wesley começa a proclamar a boa nova a multidões ao ar livre. Um de seus textos favoritos para essas pregações era: “Arrependei-vos e crede no Evangelho”. Foi para pessoas no estado espiritual de arrependimento que ele organizou as “sociedades” (não igrejas!). Foi para os arrependidos que ele criou as “Regras Gerais”: (1) evitar o mal e (2) praticar o bem (no sentido de serviço ao próximo no espírito especial). Aqueles que recebiam e testemunhavam sua fé pessoal em Jesus eram encorajados ao crescimento na graça e à perfeição no amor. Wesley cria que o mandamento: “Sede vós perfeitos” (Mt 5.48) e o urgente convite: “prossigamos até a perfeição” (Hb 6.1) tinham de ser levados a sério. Para ele, a perfeição cristã era a perfeição em amor, e o amor é sempre atuante. Por isso, não havia conflito nem distanciamento entre a evangelização e a ação social, como freqüentemente acontece hoje. Wesley se preocupava com a situação dos pobres. Ele estabeleceu um modesto fundo de empréstimos para pessoas que desejassem começar uma empresa familiar ou pagar uma dívida urgente. Para os doentes, fundou um ambulatório e compilou um livro de remédios caseiros. Procurou também atacar as causas da pobreza. Como exemplo, cita-se seu apoio à obra de alfabetização de Roberto Raikes. Além disso, direta ou indiretamente (principalmente por meio da ala evangélica da Igreja da Inglaterra), a Reforma Metodista participaria da reforma penitenciária, bem como do movimento de abolição do tráfico de escravos. Poucos dias antes de sua morte (24 de fevereiro de 1791), Wesley escreveu a William Wilberforce, encorajando-o a não abandonar a luta contra a escravidão. E essa carta teve êxito! Assim, a obra evangelistica de Wesley se completou com sua obra social de largo e duradouro impacto.

O papel da Bíblia

Em sua carreira reformista, João Wesley percebeu bem cedo a importância não só da evangelização, como também da edificação das pessoas evangelizadas. Assim, na “Fundição”, local que se tornou a sede dos metodistas em Londres, ele introduziu a “pregação da manhã”. Ele insistia que os cristãos se reunissem para cultuar a Deus diariamente, às cinco horas. Nessas reuniões, ele fazia breves exposições bíblicas, freqüentemente abordando um versículo por dia.

No prefácio do primeiro volume dos seus Sermões, Wesley declarou ao mundo seu ideal de ser homo unius Iibri (homem de um [só] livro). Alguns anos atrás, aceitei o desafio de fazer uma nova versão dessa obra. Logo percebi que a mente de Wesley estava tão saturada com a Bíblia que ele usava não apenas a doutrina, mas também a linguagem bíblica. Outra evidência de que ele buscava ser homo unius libri é seu livro Notas Explicativas sobre o Novo Testamento (1753-1754), em cujo prefácio ele declara: “Durante muitos anos, venho desejando pôr no papel em forma conveniente tudo que me tem vindo à mente pela minha leitura, pensamento ou conversação que poderia ajudar pessoas sérias, que não tiveram a oportunidade de educação formal, na sua compreensão do Novo Testamento”. Depois de mencionar, modestamente, falta de “erudição, experiência e sabedoria” como razões da sua demora em preparar tal obra, ele explica que teria de fazê-lo logo, pois uma doença séria parecia indicar a proximidade da morte. Sem forças para viajar ou pregar, mas ainda capaz de “ler, escrever e pensar”, ele se dedicou à tarefa de produzir, com a ajuda do seu irmão Carlos, as Notas.

O sacerdócio universal dos cristãos

Um dos aspectos mais importantes da obra de Wesley foi a reapropriação da doutrina do sacerdócio universal dos cristãos. Além disso, ele fez uma aplicação mais larga do que aquela feita por Lutero. Como exemplos disso, citam-se a pregação de leigos e o trabalho da mulher.

Durante os primeiros anos do movimento, seus principais pregadores foram os irmãos João e Carlos Wesley. Thomas Maxfield havia se convertido por meio da pregação de João Wesley em Bristol e se ofereceu para ajudá-lo da maneira que este designasse. Certa ocasião, estando Wesley ausente de Londres, Maxfield começou a pregar na Fundição, algo quase inédito naquele tempo. Ao saber da irregularidade, Wesley voltou a Londres às pressas para proibir tal aberração. Todavia, ouvindo a pregação do jovem, exclamou: “É do Senhor! Seja feita a vontade dele!” Depois disso, já aberto à idéia da pregação leiga, ele estabeleceu uma série de critérios a que qualquer leigo tinha de atender para ser autorizado a pregar. A pessoa precisava ter (1) graça – experiência da justificação pela fé, por meio da graça de Deus; (2) dom – capacidade de transmitir a outros o plano divino da salvação; e (3) frutos – pessoas arrependidas, testemunhando ter passado da morte espiritual para a vida por meio da sua pregação. Se o jovem atendesse a estas condições básicas, ele era arrolado como pregador em experiência e começava o seu preparo intelectual, principalmente pela leitura. Wesley preparou para os pregadores leigos cinqüenta tomos massudos de matéria teológica, desde os pais apostólicos até teólogos do século XVIII.

A vocação e prontidão dos pregadores leigos em servir como “filhos no evangelho” eram condições consideradas sine qua non por Wesley. Mas eles não precisavam passar longos anos na universidade. Logo depois de serem licenciados para pregar, eles entravam em atividade. Eram homens do povo, o que facilitava a sua comunicação com as massas inglesas. Portanto, é fácil perceber como a pregação leiga foi um fator importantíssimo no alastramento do metodismo.

Dois dias depois de começar a pregação ao ar livre, Wesley começou a incluir a mulher no quadro dos seus colaboradores. Nos agrupamentos promovidos para o alcance dos alvos do movimento, havia uma liderança feminina para as mulheres. Além disso, as mulheres ensinavam nas escolas e orfanatos do movimento, bem como em outras obras de caridade. Foi uma mulher (Ana BaIl) que fundou a Escola Dominical em High Wycombe em 1769, onze anos antes das escolas de Roberto Raikes, o fundador oficial da Escola Bíblica Dominical.

Por ocasião do enterro da sua mãe, Susana, Wesley registrou em seu diário (01/08/1742) parte de uma carta escrita por ela em 1712, na qual ela descreve cultos com mais de 200 pessoas dirigidos por ela. Isso leva a crer que Wesley via sua mãe como precursora das pregadoras que surgiram no meio do movimento. Temos de confessar que ele não reconheceu com o mesmo entusiasmo e aprovação a pregação feminina que marcava o trabalho de leigos “movidos pelo Espírito para pregar”. Entretanto, não a proibiu.

Alguns ramos do movimento, como os Metodistas Cristãos da Bíblia e o Exército da Salvação, deram um lugar de destaque para a mulher pregadora.

Concluo com palavras do próprio João Wesley: “O que pretendo é declarar abertamente a toda a humanidade o que é que os chamados metodistas já fizeram e fazem agora – ou, melhor, o que Deus já fez e continua fazendo em nossa terra. Porque não é o trabalho do homem que apareceu recentemente. Todos que observem calmamente devem dizer: ‘Foi o Senhor que fez isto e é coisa maravilhosa aos nossos olhos’ [SI 118.23].”

Autor: Duncan Alexander Reily. Nasceu no Estado do Mississipi, EUA, no ano de 1924 e foi missionário no Brasil durante 55 anos. Doutor em história da igreja pela Emory University, em Atlanta, Geórgia, ex-professor da Universidade Metodista de São Paulo e autor de vários livros, dentre eles “História Documental do Protestantismo no Brasil”. O professor Duncan Alexander Reily faleceu no Brasil, em Campinas, São Paulo, em 2004. Sua contribuição ao metodismo brasileiro foi de importância singular.